O Sumiço - Livro Tunico - Essa tal felicidade Mora aqui.

O sumiço



     

    Hoje aqui no Varandas vamos falar novamente sobre literatura regional, onde compartilho com vocês mais um capítulo do meu livro "Tunico", (O Sumiço) no qual se passa uma das mais emocionantes e perigosas aventuras deste destemido e amável personagem. 

    E na oportunidade quero homenagear a querida leitora e amiga Ione; é quem vocês estão imaginando mesmo, tenho a honra de ser amigo da maravilhosa artista bom-despachense, que cantou e encantou muitos corações nos anos 80, 90 e 2000, ela era a vocalista principal da magnífica banda Mayoma que embalou noites memoráveis do povo de BD e região. 

    Ione é uma leitora assídua dos meus livros e artigos, e ela não esquece nunca dessa passagem do personagem Tunico com seu inseparável estilingue, e sempre que nos encontramos damos boas risadas lembrando os detalhes da peripécia do moleque.

Vamos ao texto, te convido a embarcar no mundo de Tunico e desejo uma boa viagem e uma boa leitura.

 Texto 👇

    Decididos, os dois colocaram numa sacola as duas mangas maduras colhidas em uma mangueira, próxima ao Batalhão, cataram algumas pedras de cascalho que serviriam de munição para os estilingues e enfiaram no bolso do calção e seguiram viagem rumo à roça do avô de Juca.

     Embrenharam mata adentro passando atrás da bomba e desceram na “garganta do diabo” - um antigo centro de treinamento dos militares, com estande de tiros, lugar que os meninos conheciam muito bem, pois gostavam de recolher o chumbo cravado no barranco, resíduos provenientes dos tiros das armas dos policiais, coisa que a garotada usava como “munição” para os estilingues.

     Pegaram alguns chumbos, subiram mata acima, ganharam uma avenida que dava saída da cidade e começaram a jornada. Os dois, descalços, debaixo de um sol já meio quente, pois já passava das 11 da manhã, cruzaram o portão do cemitério com um semblante amedrontado. Os dois, simultaneamente, lembraram-se das tenebrosas histórias contadas sobre aquele assombroso local.

            - Se lembra do caso do Manoelzão Valentão que vovô contava, Tunico?

             - Lembro sim!

            - Credo em cruz!

       Eles ouviram essa história muitas vezes. Dizia que um valentão chamado Manoelzão fez uma aposta com um amigo: se ele lhe pagasse, na época, cem contos, ele iria naquele cemitério, à meia-noite, e pregava um prego no túmulo do Chico Cornélio - um cidadão que sofreu muito em vida, pois não tinha pai nem mãe e casou-se com uma “mulher de vida fácil” que nunca o considerou. Após tamanho sofrimento, se suicidou de tanto desgosto. Chico se tornou uma lenda. Diziam que, à meia-noite, ouvia-se - e havia até mesmo quem já tinha visto a alma penada do coitado - sentada e chorando em cima de sua sepultura.

            À meia-noite em ponto, o valentão entrou no cemitério. 

        Era mês de maio, muito frio, que com o vento dava sensação de que estava menos de zero grau. Manoelzão usava um sobretudo grosso, com um bolso fundo, onde ele levava o martelo e pregos.

            Chegando ao túmulo, o homem foi logo fazendo seu trato, pensando na recompensa que iria receber. A noite estava bem escura. Não se via lua no céu e começou a martelar o prego no túmulo do finado Chico Cornélio. Cravou bem o prego e deu as costas para a morada eterna de Chico. Foi aí que sentiu algo puxar sua roupa e quanto mais ele fazia força, mais se sentia puxado e, amedrontado, acabou sofrendo um infarto. Acharam o coitado no outro dia, mortinho da silva. Constataram que seu sobretudo, todo desfiado, estava agarrado no túmulo do Chico, preso por um prego.

            Os garotos dobraram a avenida e pegaram uma estrada encascalhada rumo à roça do avô do Juca.  A estrada vermelha e poeirenta parecia deserta. Não se via uma “alma viva”. O silêncio era quebrado pelo piar triste de um inhambu que fez os dois garotos armar seus estilingues, apontando-os em direção da capoeira tingida de vermelho, resultado da poeira da estrada.

            Mais adiante, os meninos pararam em cima de uma ponte de madeira e aproveitaram para beber água e se refrescarem no riacho.

            Ficaram brincando ali por uns trinta minutos e seguiram viagem em busca dos seus sonhos. Andaram uns cinquenta minutos e encontraram, a uns vinte metros da beira da estrada, um pé de manga carregado de frutas maduras. Na tentação se viram “trepados” na árvore, saboreando seus frutos.

            Entretidos, os garotos foram surpreendidos por uma voz que quase os derrubou da mangueira de tanto susto.

            - Desçam daí, seus ladrões de frutas! Vou meter fogo em vocês! – Bradou, com raiva, o homem que tinha uma espingarda, apontada para cima, na direção deles.

            O homem tinha um chapéu de palha atolado na cabeça, a barba grande e branca, usava uma camisa branca que mais parecia marrom pelo encardido e transparente de tão velha, deixando à mostra os grandes pelos do peito. O senhor devia ter seus cinquenta e poucos anos, mas aparentava bem mais. Berrando feito um boi louco, começou a ameaçar os garotos dizendo:

            - Com um tiro somente vou derrubar dois macacos de uma só vez…

            Os pobres garotos tremiam e não conseguiam falar nada. Foi aí que Tunico, vagarosamente, sentou-se em um galho mais grosso, escorou bem em outro galho, tirou do pescoço seu bodoque, tateou seus bolsos e pegou um chumbo de munição calibre 38 - que garimpara, mais cedo, no estande de tiro dos militares - aproveitou um segundo de distração do inimigo, mirou e impulsionou com toda força que tinha o estilingue feito de câmara de ar de trator e “mandou bala” no velho. Acertou-o bem na cabeça! Isso o fez cair meio tonto, sem conseguir se levantar, apalpando a cabeça já sem chapéu, de onde o “melado vermelho” jorrava.

            Os garotos desceram da árvore que nem dois micos e pegaram a estrada em disparada enquanto ouviam o berrar do velho excomungando-os e amaldiçoando-os e até as suas últimas gerações.

            Passado o susto e, após terem a certeza de que o velho não mais os seguia, eles finalmente pararam de correr e começaram a andar, mas olhando o tempo todo para trás.  Nisso já eram mais de quatro horas da tarde e eles ainda teriam que andar mais alguns quilômetros até chegarem à roça do avô do Juca.

            Enquanto isso, na cidade, os seus familiares já começaram a se preocupar. Já tinham interrogado todos os garotos da rua, se sabiam do paradeiro dos fujões, qual a última vez e o local que os viram. A polícia foi acionada, e em pouco tempo a cidade toda já tinha ficado sabendo, pois, alguém pediu para noticiar na única rádio local.

            A mãe de Tunico foi avisada ainda no trabalho e estava desesperada. A mãe e o pai de Juca também estavam descontrolados.

            Os meninos apertaram os passos, pois a noite logo cairia e provavelmente eles iriam se perder na penumbra da noite. Foi então que avistaram um arraial que Juca logo identificou. Já estavam próximo do destino.

            Chegando ao arraialzinho, eles ouviram barulho de sanfona que vinha de uma venda e um cheiro de comida que quase os fizeram “aguar”. Atravessaram um mata-burro, depois uma ponte velha de madeira e com a noite já caindo avistaram a casa do tesouro escondido.

            O avô do Juca, numa tranquilidade invejável, estava sentado na porta da sala fumando o cachimbo. Ele avistou os meninos e ficou esperando que eles chegassem, ali, sem se mover do lugar.

            Ao ver o velho, Tunico logo se lembrou da história de que ele, ainda rapaz, fora convocado pelas forças armadas para a Segunda Guerra Mundial e ali mesmo, naquela fazenda, nos anos 40, o jovem desertou e ficou escondido na mata por três meses. Sua mãe levava comida para ele diariamente, na calada da noite, para não deixar pista, pois o exército esteve por lá várias vezes procurando-o para prendê-lo e puni-lo pelo crime de traição à Pátria. Mas todos sabiam que o jovem havia desertado por uma causa nobre, pois ele era arrimo de família. Seu pai havia morrido quando ele ainda era garoto e, além disso, tinha uma irmãzinha especial e era ele que tinha de ajudar a mãe a cuidar dela.

            - Benção, Vô.

            - Deus abençoe, meu filho! Onde está o resto do povo?

            - Não tem mais ninguém, nós viemos sozinhos.          

            - Vieram a pé? Devem estar cansados e com fome então! Mulher, temos visita!

            A dona Ana, vó de Juca, surgiu na porta e foi logo os levando para dentro, pegou uma água que fervia no fogão à lenha, temperou em uma bacia e os levou para tomar banho. Sem perguntar o porquê e como eles chegaram lá, a velha colocou comida no prato, levou para eles e, após repetirem três vezes, colocou-os para dormir.

            Na cidade, a situação ficou ainda mais tensa com o cair da noite. O cortiço estava derramando de gente querendo ajudar, outros por curiosidade e naquela altura, as mães dos garotos já estavam inconsoláveis.

            Um grupo de homens e alguns garotos organizaram uma busca na mata, munidos de lanternas e, nada! Fizeram buscas nos córregos e açudes onde eles costumavam frequentar e não tiveram êxito. E quanto mais passava o tempo, mais a esperança de encontrá-los vivos ia se acabando.

            Na roça, os travessos já estavam tranquilos em uma cama com colchão de palha e pela primeira vez se lembraram de casa.

            - Será que nossas mães deram falta de nós, Juca?

            - Elas devem estar dormindo, tranquilas e nem sentiram nossa falta. Amanhã encontraremos o tesouro e voltaremos, ricos, para casa. Vou até comprar um colar para mamãe - disse Tunico, bocejando.

            - Mas a pé? E se o barbudo estiver nos esperando? Ele vai nos matar…




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